Queima da Bíblia é uma afronta ao Estado Democrático

por Johnny Bernardo*

Vivemos um período turbulento, de intolerância religiosa e ideológica. Nesta guerra entre o sagrado e o ideológico, entre o meu e o teu, demonstrações irracionais de aversão ao outro se manifestam através de atos brutais, como assassinato de inimigos, sequestro e estupro de meninas na Nigéria, intolerância religiosa em alguns redutos fundamentalistas, destruição e contrabando de relíquias históricas, e queima de exemplares de livros sagrados. Exemplos de extremismo ocorrem em todos os países e culturas, como a exemplo da campanha midiática do pastor estadunidense Terry Jones, que é conhecido por declarações ofensivas ao islamismo e que acabou preso antes de queimar 3 mil exemplares do Alcorão, livro sagrado do islamismo, base doutrinária de mais de 1,6 bilhão de pessoas.

Apesar do espetacular avanço científico e tecnológico verificado nas últimas décadas – particularmente a partir da segunda metade do século XX – a humanidade ainda é vitíma da intolerância, da truculência de indivíduos que tomam o mundo pra si, que veem a sociedade a partir de uma ótica isolacionista, preconceituosa e destrutiva. Em suma, ainda não conseguimos nos livrar da bárbarie, do primitivismo cruel e desumano. Cabeças ainda rolam no Oriente Médio, religiões destrutivas continuam a transformar seus adeptos em tolos úteis, em amebas facilmente manipuláveis, crianças e mulheres continuam sendo alvos da truculência e do machismo arcaico e medieval. Dá-se pouco valor ao outro, ao indivíduo, ao direito de cada um professar sua crença, de se manifestar livremente e sem empecilho. 

Nesta guerra de ideias e de intolerância religiosa livros e relíquias são alvos preferenciais. Entende-se que para atingir o todo é preciso focar em um objeto, um símbolo com o qual o todo se identifica, se relaciona em seu cotidiano de devoção. Foi assim na Idade Moderna, com o Index Librorum Prohibitorum – Índice dos Livros Proibidos pela Igreja Católica – e, mais recentemente, no período entreguerras, quando a Alemanha nazista de Adolf Hitler realizou diversas sessões de queima de livros, “sagrados” ou não, impossibilitando o acesso a recursos literários e dogmáticos que contrariavam sua ideologia e pretensão de domínio mundial. Pouco mudou de lá para cá. A intolerância e o desrespeito são realidades incontestáveis, presentes em nosso dia a dia, problemáticas cuja solução se perde nas longas discussões acadêmicas e partidárias, e que deve ser enfrentada de forma resoluta por todos.

Vivemos algo semelhante no Brasil do século XXI. Além de uma das piores composições do Congresso Nacional, temos uma acirrada disputa ideológica e religiosa que nos remete ao primitivismo bárbaro, que estabelece barreiras invisíveis, porém palpáveis, entre grupos distintos da sociedade. Exemplo da intolerância e do desrespeito para com o outro, para com a religião alheia, foi a recente queima de um exemplar da Bíblia na Universidade Federal do Acre (UFAC) pelo estudante e ateu Roberto Oliveira. Nada justifica a queima de exemplares de quaisquer que sejam os livros confessionais. Apesar de laico – característica indispensável ao funcionamento de um Estado -, o Brasil é um país multireligioso, que assegura o direito à livre expressão religiosa. A atitude de Oliveira é uma afronta ao Estado Democrático de Direito e um exemplo de intolerância que devemos a todo custo evitar e repudiar. 


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*Johnny Bernardo é jornalista, pesquisador da religiosidade brasileira e das relações entre religião e sociedade, administrador do blog de entrevistas Somos Progressistas e do grupo Cristãos Progressistas.


Contato: pesquisasreligiosas@gmail.com